sexta-feira, 6 de junho de 2014

Foi doce morrer no Panema

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Foi doce morrer no Panema

Fernando Soares Campos

Santana de Ipanema. É assim, com preposição simples, que meus amigos cariocas se referem à minha cidade natal quando repetem para outras pessoas algumas histórias que costumo contar. Vez ou outra os corrijo: “É Santana do Ipanema”. Mas não tem jeito, continuam pronunciando “de Ipanema”.

Eu sempre quis entender o motivo de eles pronunciarem sem a contração prepositiva, até que concluí que, para os cariocas, se “Nossa Senhora”, a mãe de Jesus, é “de Copacabana”, então, a avó “Santana” só poderia ser “de Ipanema”. E os meus amigos concordam com essa minha estranha dedução.

Acontece que minha cidade natal localiza-se à margem do rio Ipanema, um curso d’água temporário, como tantos outros nos sertões nordestinos, e tem Senhora Santana como padroeira, daí o seu nome, que não tem qualquer relação com a Ipanema dos cariocas.

Sempre contei acontecimentos insólitos ocorridos em minha terra, casos que testemunhei, vivenciei ou tomei conhecimento através dos escritos de meus conterrâneos: crônicas, contos e até romances de escritores santanenses e de cidades circunvizinhas no Médio Sertão alagoano. Porém, desta vez, vou contar um caso que, de tão surreal, transcende a nossa própria capacidade de imaginar e criar concebendo intencionalmente situações e elementos verossímeis; um caso que só poderia acontecer em sonho como esse que tive, com eventos de características psicodélicas.

Meu sonho começou no sopé do Maciço da Tijuca, num trecho do Itanhangá, Cidade do Rio de Janeiro. Eu caminhava ouvindo o canto dos pássaros, apreciando a vegetação florestal e os voos espiralados de aves marinhas.

Sempre que faço essas caminhadas em vigília, me lembro da Caatinga, das áreas onde, na infância, eu me embrenhava durante invernos chuvosos; porém, ali no sonho, aconteceu uma súbita mudança de cenário, como só ocorre em sonho: passei da margem da floresta para a margem do rio Ipanema, o Velho Panema, como o chamamos, que nasce em Pernambuco e deságua-se no São Francisco em Alagoas. O momento também se transformou de intensa claridade do dia para a penumbra do entardecer. Entretanto esses fenômenos oníricos não me surpreendem, pois estou acostumado com a dinâmica das alterações de elementos visuais, estímulos auditivos e movimentos que observo quando a minha consciência, mesmo levemente ensonada, se projeta para o universo extrafísico.

Continuei caminhando atento aos detalhes do novo ambiente e, com a audição afinada, escutando o coaxar dos sapos e o cricrilar dos grilos em harmonia com o murmurinho emanado das águas correntes por entre as pedras. Eu já estava me acostumando com aquela sinfonia quando um novo som elevou-se acima da sonoridade da natureza. Uma voz destoada me fazia lembrar uma antiga canção. Corri a vista ao redor tentando identificar a fonte musical, logo avistei a silhueta de um homem em pé sobre um lajeiro. Ele cantava repetidamente uma paródia do refrão de uma cantiga de Dorival Caymmi:

Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema

Ficou por algum tempo repetindo como numa gravação defeituosa, até que parou de cantar e continuou olhando o rio.

Cauteloso, subi no lajeiro pela parte menos íngreme e me aproximei dele. Era negro, alto, magro e aparentava idade em torno de trinta anos. Ele me viu, mas parecia ignorar a minha presença. Perguntei:

― Por que você canta parodiando uma música do Caymmi?

Ele me fitou com a fisionomia carregada. Tive a impressão de que estava avaliando se eu mereceria resposta, ou não. Voltou a apreciar o rio e falou pausadamente:

― Eu era doido por esse rio... Quer dizer, ainda sou... Mesmo com toda a imundície que despejam nele hoje em dia, eu não ia deixar de me banhar nessas águas... Como era bom nadar, dar sapatada, mergulhar, pegar traíra nas locas...

Emudeceu e continuou olhando as corredeiras, que refletiam a pouca luminosidade crepuscular. Insisti:

― Mas você não me respondeu objetivamente. Quero saber o porquê da paródia. Por que você arremeda a música e letra de Caymmi dizendo que foi doce morrer no Panema?

Em vez de responder, ele me olhou arregalado e recomeçou o lamentoso canto, agora com a voz empostada, cavernosa:

Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema

Desisti e resolvi continuar caminhando. Quando eu já estava a alguns metros de distância, ele me chamou:

― Peraí!

Parei e me voltei.

― Você quer mesmo saber por que eu acho que foi doce morrer no Panema?

― Sim, foi o que eu lhe perguntei!

― Apois eu lhe digo que só quem morreu afogado no Panema sabe por causa de que eu digo isso.

― Entendo, mas isso não responde à minha pergunta.

― Eu sei que essa num era a resposta que você queria, e num dá pra responder sua pergunta com meia dúzia de palavra.

― Então, fale, estou lhe ouvindo.

― Tem tempo pra escutar a história completa? Num é pouca coisa não!

― Acho que tenho...

― Apois escute. Ainda me lembro como se fosse hoje. Eu vi muita gente olhando a cheia lá na Ponte do Padre, uma das maior cheia daquela época, tinha chovido muito nas cabeceiras naqueles dias. O riacho da Camoxinga também tava botando água, tinha até uns minino saltando da ponte. Foi aí que eu resolvi atravessar o Poço do Juá, só pra me amostrar, só pras pessoas vê que eu nadava que nem um peixe e que não tinha medo daquele mundaréu d’água.

― Já existia a ponte ligando o centro da cidade ao Cachimbo Eterno?

― Não, tinha não... Se essa ponte já tivesse sido feita, eu ia fazer como Carrinho, o índio catimbozeiro. Eu ia saltar bem no meio da correnteza entre as pedras. Mergulhava e só subia depois do Poço dos Home.

― Você viu Carrinho fazer isso?!

― Sim! Muitas vez! Cabra macho, aquele! Desde que eu morri que não saio da beira do Panema. Já faz um bocado de ano que ando vagando por aí. Vejo tudo que acontece. Conheço cada pedra, cada pé de pau e cada casa que foi feita na beira do Panema. Sei de todas que ele levou. Vi a construção da ponte nova... que já tá mais velha do que certos avô que perderam neto afogado no Panema...

Apesar do esforço que eu fazia para dissimular a minha inquietação, creio que ele notou que eu já estava ficando tenso, sobrecarregado por difusos sentimentos, lembranças e dúvidas. Na tentativa de encurtar os relatos, perguntei:

― O que aconteceu de tão maravilhoso quando da sua morte, ao ponto de você considerar que foi doce morrer no Panema?

― Acho que é melhor eu parar por aqui. Se eu lhe contar tudo, você num vai entender nada.

― Posso não entender, mas não vou descrer da sua história, como muita gente não acreditaria se eu contasse que falei com uma alma do outro mundo.

― Do outro mundo?! Que outro mundo?! Num existe outro mundo. O mundo é um só.

Dizendo isso, sentou-se no lajeiro, apoiou os cotovelos nas pernas e o rosto nas mãos, continuou apreciando o rio. Eu o acompanhei me sentando ao lado.

― Concordo, o mundo é um só, mas existem lugares e elementos distintos, diferentes, e até podemos dizer que alguns são, de certa maneira, opostos entre si. A água, por exemplo, não se mistura com o óleo.

― Eu já tinha reparado isso... Tem umas coisa que jogam no Panema, mas ele num aceita, num afunda, fica tudo boiando nos poço, até que vem uma enchente e arrasta aquela porcariada toda...

― Mas você é de outra época, certo?

― Não. Sou dessa também. Tou vivo que nem qualquer vivente. A diferença é que eu nunca joguei porcaria pros peixe do Panema. A única coisa que dei pra eles comer foi as carne que eu carregava.

― Você surrupiava ou comprava carne para alimentar os peixes?!

Pela primeira vez ele pareceu bem humorado, respondeu entressorrindo:

― Eu num disse que você num ia entender o que eu tinha pra contar? Tou falando das carne do meu corpo, que os peixe se fartaro de comer.

― Ah, sim! Entendi... E como foi isso? Algum cardume atacou você? Você não resistiu? Mas aqui não dá piranha nem outra espécie tão agressiva...

― É melhor eu contar do começo. Você disse que tem tempo pra ouvir.

― Talvez tenha, mas não se preocupe com isso, continue.

― Quando eu já tava no meio do Poço do Juá, ainda ouvi o povo gritando: Volta! Volta! Mas aí num dava mais, eu num tinha mais força pra nadar contra a correnteza... E o pior aconteceu... caí numa panela. Fique rodando que nem pião, no fundo, até que fui cuspido e desci boiando que nem tora de mulungu... Num tava vendo mais nada, só sei que num demorou muito e... Tum!

Silenciou.

― Tum?!

― Isso mesmo. Tum! Bati com a cabeça numa pedra e me apaguei.

― Desmaiou?

― Nem sei direito se desmaiei ou se morri na hora com a cabeça rachada que nem boi na matança.

― Por que você não sabe?

― Por causa de que, depois disso, só me lembro que acordei meio zonzo.

― Acordou?!

― Sim, e, pelo que senti, acho que deve ter passado uns dois dias, pois as água tavam mais mansa.

― Então, você se acordou na beira do rio. Foi isso?

― Errado. Eu me acordei no fundo do Poço dos Home, logo depois daquele estreito das pedra ― apontou para o local.

― Embolou!

― Embolou?! Embolou o quê?!

― Essa sua história acabou de dar um nó cego na minha cabeça!

Novamente entressorriu.

― Apois eu vou terminar de contar. Aí você desata esse nó, ou arrocha de vez.

― Faça isso, por favor!

― Quando eu me acordei, também pensei que tava deitado na beira do rio, mas num entendia por que aqueles peixe todo passavam na minha frente, daqui pra lá e de lá pra cá ― gesticulou traçando um vaivém com a mão. ― Foi aí que arreparei que tava no fundo d’água, mas podia respirar como se tivesse fora. Pensei que tinha virado peixe! ― sorriu aberto.

Aos poucos se tornou novamente sisudo, abstraído.

― Respirando no fundo d’água... É... realmente é difícil de acreditar...

― Tá me chamando de mentiroso?

― Não! Nem pensar! Não foi minha intenção! Mas não posso entender o que você acaba de contar, se há pouco falou que os peixes comeram suas carnes, seu corpo. Um cardume lhe atacou?

― Vamos fazer uma coisa ― abriu os braços e inflou o tórax. ― Dê um murro aqui ― bateu no peito.

― Um murro?!

― Você ouviu o que eu disse, vamo lá, dê um murro aqui ― mais batidas no peito.

― Por que preciso bater em seu peito?

― Você só sabe perguntar?! Vamo lá, bata!

Cerrei o punho, estendi o braço tomando distância e girei rápido em direção ao seu tórax...

Vupt!

Foi como se eu tivesse esmurrado o ar: o braço atravessou seu corpo sem tocar em nada, até me desequilibrei devido ao impulso, tombando ligeiramente sobre ele, que agora gargalhava.

― Viu? Eu não virei peixe, mas os peixes passavam por dentro de mim como seu braço passou. Eles iam e vinham, subiam e desciam, parecia uma festa, que eu logo descobri o motivo. No meu lado tinha um corpo... Na verdade, era o que restava de um corpo. Olhando pro rosto, num dava pra saber se era de homem ou de mulher, tava todo roído, esburacado, sem nariz, sem olho e sem bochecha, e as piabas disputavam o que ainda tinha de queixo. O resto era quase um esqueleto de calção...

― De calção?!

― Isso mesmo, de calção, o calção que eu tava vestido quando entrei n’água.

― Então... era... você!

― Não! Era meu corpo. Eu tou aqui, vivinho da silva.

Respirei fundo para me recompor do estarrecimento.

― Bem, se as coisas aconteceram dessa forma, isso contradiz a paródia que você estava cantando. Não posso conceber que uma cena dessas retrate um fato aprazível, um momento de doçura.

― Se você deixar eu terminar a história, talvez entenda.

― Sou todo ouvidos.

― E o meu corpo num tinha mais nem orelha ― gargalhou mais uma vez.

― Muito engraçado, vou guardar pra rir mais tarde.

― Eu já tinha me levantado quando vi uma tarrafa descendo devagarinho, passando na minha frente, se fechando bem em cima do defunto... Os peixe que iam saindo de dentro do esqueleto num tinha mais pra onde correr, foram laçado, tudo agitado querendo se livrar da rede, que num demorou muito começou a subir carregadinha. E eu resolvi acompanhar a tarrafa, fui caminhando atrás dela, bem devagar... Quando vi, já tava fora d’água, bem na beira do poço. Lá embaixo eu pensava que era de noite, aí ouvi o relógio da matriz bater dez hora. Olhei prum lado, olhei pro outro e quem eu vejo em cima de uma pedra descarregando a tarrafa?

― Quem?

― Uma pessoa que eu gostava muito, muito meu amigo, gente muito boa. Pescamos muito nesse Panema... Num sei se você conheceu. Bom, nem sei se você é daqui de Santana...

― Sou, não moro mais aqui, mas aqui nasci e me criei tomando banho no Panema. Se você me disser quem era essa pessoa, pode ser que eu a tenha conhecido.

― Era o nego Cassiano. Conheceu?

― Acho que não tem santanense com mais de sessenta anos que não tenha conhecido Cassiano.

― Sendo assim, você que tem cara de mais de setenta deve ter conhecido.

― Sim, conheci o Cassiano, mas não tenho mais de setenta. As aparências enganam, ainda falta mais de um lustro pra eu chegar lá.

― Apois veja, eu cheguei perto dele e falei, mas ele não respondeu. Eu continuei falando, mas parecia que ele nem tava me vendo. Eu até fique meio chateado, sem saber o que tava acontecendo. Cassiano num parava de jogar a tarrafa, ela voltava sempre carregada. Quando o relógio da igreja bateu doze pancada, o balaio dele já tava cheio. Ele cobriu os peixe com a tarrafa, botou o balaio na cabeça e saiu caminhando. Eu fui caminhando atrás. Chegando no Poço do Juá, ele entrou numa canoa. Também entrei. Atravessemo o rio. Ele botou o balaio na cabeça e subiu pelo beco que dá em frente a casa de seu Antônio Bulhões. Dali ele foi até a praça do comércio. Aqui e ali ele parava e vendia uns dois ou três pescado, até que chegou no bar de Zé Galego. Lembra onde era?

― Era ali no casarão onde hoje é a Praça Senador Enéas Araujo. Se ainda existisse, seria bem em frente ao Bar da Pitú.

― Quando ele entrou no bar de Zé Galego, só tinha sobrado uns lambari e duas traíra. Tinha uma que pesava uns três quilo, com mentira e tudo. Zé Galego comprou a sobra. Cassiano botou o dinheiro no bolso, pediu pra guardar o balaio lá no bar e foi lá pras bandas da Rua do Barulho, onde tinha umas casa de jogo. Ele era viciado em jogo de baralho. Tudo que ganhava ia pra mesa de jogo. Eu fiquei ali mesmo no bar. Tinha gente jogando sinuca e outros apiruando, me sentei num canto e acabei cochilando...

― Alma também dorme?!

― Dorme e sonha como você ou qualquer outro vivente.

― Pra mim, foi novidade, eu pensava que as almas passavam o tempo todo acordadas...

― Me acordei já de noite, o bar tava cheio, muita gente jogando sinuca e outros bebendo e comendo lambari frito. Era uma zoada medonha. Zé Galego e o empregado servindo todo mundo, tirando o tempo da sinuca e se livrando dos cachaceiro. Daí a pouco apareceu uma mulher na porta da cozinha gritando: “Seu Zé! Seu Zé! Chega aqui!”. Todo mundo se calou, e ela num parava de gritar. Zé Galego se avexou e foi acudi a mulher, teve gente que largou o taco e foi junto. E eu fui atrás, queria ver que disgrama tinha acontecido na cozinha. Quando cheguei lá, tava o maior alvoroço: “O que é isso, seu Zé?! Como é que isso foi parar aí?!”, a mulher gritava apontando pra traíra que ela tava tratando. As pessoas começaram a cochichar, teve até quem se benzeu. Eu passei no meio deles e fiquei bem junto da mulher. O bucho da traíra tava aberto, escancarado, e você num vai acreditar se eu lhe disser o que tinha lá dentro...

― Já falei que acredito em tudo que você me contar, posso até não entender, mas acredito.

― Apois a mulher apavorada apontou pro bucho da traíra e gritou: “Isso é um olho de gente, seu Zé!”. As pessoas começaram a falar mais alto, tinha quem dissesse que sim e quem dissesse que não. Zé galego pediu pra todo mundo se calar. Aí falou: “Dona Maria, isso não é olho de gente, isso é olho de peixe”. A mulher respondeu: “Olho de peixe?! Mas, seu Zé, eu trato peixe desde minina, eu conheço olho de peixe e olho de gente. Nunca vi peixe do Panema com um olho desse tamanho!”.

― E você? O que você achou? Era olho de peixe ou olho de gente?

― Você num vai me dizer que ainda não entendeu que olho era aquele, vai?

― Não, não vou, até porque não quero nem pensar mais nisso. É muito macabro!

― Mas, você querendo ou não, eu vou terminar a história.

― Então, termine logo. O que foi mais que aconteceu?

― Zé Galego já tava convencendo todo mundo de que aquilo era olho de peixe, que aquela traíra tinha arrancado o olho de um macho maior do que ela, se defendendo dum istrupo. 

Mesmo horrorizado com aqueles sinistros relatos, não segurei o riso.

 ― Sabe quem chegou na hora?

― Não, mas, se você disser, eu vou saber.

― Cassiano. Ele já tinha perdido tudo no jogo e tava bebo que nem um gambá. Parou na porta da cozinha e perguntou: “O que é que tá acontecendo aqui?”. Zé Galego pediu pra pessoas se afastar, apontou pra traíra em cima da banca e disse: “Num é nada demais não. Foi dona Maria que se espantou com isso aí”. O nego avistou a traíra do bucho rasgado e foi se achegando pra mais perto, com o zói arregalado e cara de quem viu assombração. Quando a cara do nego tava quase colada no bucho da trairona, ele falou: “Ne-zin-ho”.

― Ne-zi-nho?!

― Isso mesmo. Ne-zin-ho, assim, assuletrando.

― E o que foi as outras pessoas disseram?

 ― Num disseram nada. Ficou todo mundo calado.

― E você, o que achou disso tudo?

― O que eu achei?

― Sim, o que você achou do gesto de Cassiano?

Ele se levantou e olhou ao redor. A noite já avançava, a pouca claridade com que ainda podíamos contar vinha do clarão da iluminação pública da cidade e da luz das estrelas. Devagar, ele começou a descer do lajeiro. Quando tocou a areia, parou e falou sem olhar pra trás:

― Desde aquele dia que eu sei que Cassiano foi o melhor amigo que eu tive quando era vivente na carne.

― Por que você diz “desde aquele dia”?

Ele virou-se pra mim e respondeu:

 ― Por causa de que naquele dia eu entendi que amigo que é amigo reconhece o outro até mesmo vendo só o olho dele no bucho dum peixe.

Dizendo isso, ele me deu as costas, caminhou em direção ao Ipanema e, devagar, foi entrando n’água, descendo para o fundo do rio, sumindo aos poucos, até desaparecer totalmente.

Eu me levantei, apreciei o cintilar das estrelas e novamente minha audição se aguçou para o coaxar dos sapos, o cricrilar dos grilos e o murmurinho das águas correntes por entre as pedras. A orquestração da natureza era concreta, real, mas a minha imaginação completava a sinfonia com a paródia de uma antiga canção de Caymmi...

Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
Foi doce morrer no Panema
Nas ondas das cheias do Panema
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Ilustração: Pintura de Fábio Campos com alterações de 
AIPC 
– Atrocious International Piracy of Cartoons
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PressAA


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